domingo, junho 29, 2008

O Preço da Felicidade

(..) Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. 
Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. 
E quanto mais perto for da hora, mais feliz me sentirei. 
Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! 
Mas se chegares a uma hora qualquer, eu nunca saberei a que horas é que hei-de começar
 a arranjar o meu coração, a vesti-lo, a pô-lo bonito... São precisos rituais. 
- Que é um ritual? Perguntou o principezinho. - É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. 
É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. (...) 

 A. Saint-Exupéry, in "O Principezinho" 



Photo (c) Robert Mapplethorpe


Saí de casa mais cedo para comprar as tuas flores preferidas. De caminho passei a buscar os camarões para o risotto com lima e açafrão, que dizes ser o melhor que algum dia provaste. A marquise de chocolate deixei-a pronta de véspera, só faltam as framboesas que encomendei ao Sr. Nicolau. O Alvarinho está no ponto. Pensei na minha avó, quando lhe perguntava pela receita dos melhores bolos do mundo. É o amor minha filha, um ingrediente que não se encontra nas mercearias. Estava nervosa… Disseste que chegavas às sete e meia mas os teus voos atrasam-se sempre e ainda tinha tanta coisa para fazer. Queria que tudo ficasse perfeito como tu gostas. Não, como eu gosto. Enquanto fazia a cama de lavado pensava no teu abraço à chegada, e em como seria bom ter-te comigo nestes primeiros dias do verão. Acabaram-se as velas. De escantilhão às Amoreiras e mais meia hora a escolher, sabes como sou hesitante e sem ti para ajudar fico pior. Acabei por trazer umas pequeninas com cheiro de fruta madura que espalhei pela casa, as flores frescas na jarra alta que me deste nos anos, a mesa posta com vista para o rio e uma leve brisa de fim de tarde a entrar pelo terraço. Tudo pronto, lembrei-me que gostas de me ver de branco. Contra relógio vesti-me três vezes até acertar, exagerei no perfume, senti-me a tremer quando reparei na hora, acendi um incenso, baixei o volume da música. Estavas quase a chegar…

quinta-feira, junho 26, 2008

Love Me Tender



Há momentos que não podemos explicar, como partes da nossa existência que se completam como um puzzle. Fragmentos que se encaixam compondo uma história cujo fim desconhecemos, mas aos poucos vislumbramos, à medida que começam a fazer sentido. Às vezes basta um olhar, e percebemos que estamos irremediavelmente perdidos. Antes de ti, amar era um verbo intransitivo, como se o meu amor fosse tanto e tão único que bastava-se a si próprio, e bastava-me a companhia desse amor que eu ainda não sabia que o era. Então aconteceu um daqueles momentos que não têm explicação, e esse momento foi um olhar que me encheu de pavor. Na minha mal disfarçada timidez devolvi-te um sorriso cabisbaixo, a consentir a sedução de encantadora de serpente, e eu, presa fácil da tua armadilha. Deixei-me amar como um cão sem dono que conhece o seu destino errante e serve o desejo de pertença de quem o acolhe com a mesma facilidade que o abandona. Só assim experimentei o teu amor, sempre a medo de te ver partir levando contigo a minha alegria de rafeiro agradecido. Pertencer-te foi algo inevitável, que não teve nada a ver com o meu amor, mas apenas com o teu, sem a mínima possibilidade de um dia se encontrarem. A nossa farsa, afinal, não passou de um folhetim. O meu erro foi levar-te a sério. End of story.

sábado, junho 21, 2008

I don't know why



Se também tivesses morrido eu podia chorar-te com saudades e falar contigo a olhar o céu. Arrumar-te-ia no mais fundo do meu coração e estarias sempre comigo, como os álbuns de fotografias na estante do escritório, separados por viagens ou por acontecimentos. Evidências de uma felicidade de que às vezes duvidaria se não pudesse ver, e mesmo assim pergunto-me se não serás fruto da minha imaginação. Mas assim, esse luto dos vivos não tem consolo. Mesmo quando deambulo pelas ruas de Lisboa e já não te vejo sair do autocarro, apressada para o trabalho, sei que estás ali. Se é verdade que as pessoas não morrem enquanto vivem no coração de quem ama, por que insisto na tua existência quando há tanto tempo morri?


domingo, junho 08, 2008

Sossegar

Photo (c) Daniel Malhão


O sossego é, em grande parte, uma expressão espiritual de segurança. Sossegar é saber com o que se conta, desde o azul do céu aos irmãos. O coração sossega em quem se conhece. Sossegar é conhecer uma totalidade, as coisas feias ou bonitas, mas previsíveis e familiares. É por isso que sossega olhar para um rosto amado, que se conhece, ouvir a voz dessa pessoa, mesmo quando está a dizer disparates. Não há falinhas mansas que tragam o sossego dos gritos duma pessoa com quem se pode contar. É um alívio. Só a ordem pode sossegar, por muito alterosa que seja. A tempestade sosssega o marinheiro que conhece bem o barco e o mar. 

Miguel Esteves Cardoso, in Verbos Irregulares


quinta-feira, junho 05, 2008

Goodbye, lady



It's Time to say Goodbye...


domingo, junho 01, 2008

Aurevoir, madame

(C) Pedro Casqueiro


Depois de fechares a porta e deixares as chaves ao pé do telefone, deitei mais uma dose de uísque sobre o gelo quase derretido, apaguei a luz e sentei-me em silêncio, sem nenhum pensamento sobre o que acabara de acontecer. A cabeça latejava ao ritmo do coração enquanto a garganta apertava, seca, e uma dor inexplicável contia as lágrimas que custavam a sair. Mais um golo, dessa vez mais longo, gelado, e sem desviar o olhar do cinzeiro cheio das beatas mal apagadas dos teus esseges senti a anestesia do álcool invadir-me aos poucos. Suave, dizia o maço vazio em cima da mesa, que estranho paradoxo...Se há algo que nunca existiu entre nós foi suavidade, mesmo antes de descobrires que eras muito nova para me amar como eu queria. Como eu queria, disseste, sem me dizeres como é possível amar de outro modo. Sem me dizeres como era o amor que tu querias. Como se eu não soubesse. Na estante, ao pé da janela entreaberta, fotografias da nossa primeira viagem a Londres, o teu sorriso tímido debaixo do chapéu-de-chuva em Regent Park, os olhos pequenos pela objectiva dentro a convidarem para um fim de tarde no quarto do hotel. O teu cheiro ainda impregnava a sala escura, o livro que deixaste marcado na mesa-de-cabeceira, os mesmos lençóis brancos onde na noite passada dormimos de costas voltadas, os cd espalhados, as roupas que depois passavas a buscar. Não sei quanto tempo permaneci assim, cercada de vestígios de nós, flashbacks de viagens e olhares e sorrisos e fotografias de quartos de hotel em ritmo de slideshow, até adormecer de cansaço. Acordei com o barulho dos eléctricos que protestavam com o carro que lhes travava a passagem. Depois de um longo suspiro levantei-me, percorri com o olhar o cenário de fim-de-festa, e por instinto iniciei o ritual das manhãs de domingo. Sumos de laranja, páginas do Expresso separadas na véspera, croissants de manteiga, chávenas de ristreto curto sem açúcar e duas aspirinas. Foi quando me dei conta de que não estavas a dormir até mais tarde, e que aquela manhã de domingo não seria igual a tantas outras. Só o alívio foi maior que a solidão.