terça-feira, maio 01, 2007

Uma nódoa do passado...



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar seus olhos que são doces... 
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto... 
No entanto a tua presença é qualquer coisa, como a luz e a vida... 
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto... 
E em minha voz, a tua voz... 
Não te quero ter, pois em meu ser tudo estaria terminado... 
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados... 
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada... 
Que ficou em minha carne como uma nódoa do passado... 
Eu deixarei...
Tu irás e encostarás tua face em outra face... 
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada... 
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu...
porque eu fui o grande íntimo da noite... 
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa... 
Porque os meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço 
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. 
E eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos 
Mas eu te possuirei mais que ninguém, porque poderei partir. 
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas, serão a tua voz presente, tua voz ausente, a tua voz serenizada. 

 (Vinícius de Moraes in "Ausência")

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